Nova Jerusalém: As nuances e desígnios da última cidade da Terra.

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Em um cenário perfeito e santo, Deus estará eternamente com seus escolhidos. Estas são as palavras que, talvez, resumem os últimos versos da revelação de Deus, em Ap 21-22. O “novo” toma lugar central nesta conjuntura, com destaque para uma cidade, diferente de tudo que nossa humanidade pode construir ou vislumbrar: A Nova Jerusalém.

É certo que ela surge no texto do apóstolo bem longe dos versículos finais da descrição da visão, mais especificamente em Ap 3.21, com ares de recompensa que é prometida a mais fiel das sete igrejas da Ásia menor, Filadélfia.

O sonho de uma Nova Jerusalém era algo permeado na literatura apocalíptica judaica. Nós podemos encontrar o conceito da nova cidade revelada com o advento do messias em vários textos de literatura apocalíptica como no Testamento de Dã, 2 Baruque e 2 Esdras[1].

As riquezas de detalhes na exposição que João faz da Nova Jerusalém, aliado a dificuldade em relação aos diferentes métodos de interpretação do livro do Apocalipse desenvolvidos até hoje (longe do consenso) trazem consigo um desafio e ao mesmo tempo uma grande oportunidade de estudo.

Vamos procurar entender aqui o que de fato representa a Nova Jerusalém e quais são os desdobramentos a partir dela, desde o cenário em que ela surge, passando pelo povo que habitará nela, junto com Cristo e com o Senhor, até a literalidade e o simbolismo desta que será a última cidade da terra.

 

  1. O CONTEXTO DA DESCIDA DA CIDADE

A Nova Jerusalém celestial surge na última das sete seções do livro do Apocalipse[2] (que compreende o intervalo dos capítulos 20 e 22), sendo mais especificamente tratada nos meandres do capítulo 21.

O estudo do contexto da Nova Jerusalém é muito importante, principalmente quando pensamos no sistema filosófico dualista grego, com seus argumentos a favor de uma transitoriedade terrena, de caráter mau, e sua contraposição na existência de um mundo espiritual perfeito somente no pós-vida, que sendo muito popular no primeiro século, ainda se perpetua com considerável proliferação em vários grupos do cotidiano.

A tratativa bíblica é clara ao mostrar o aspecto terreno dos planos de Deus. O destino final dos eleitos certamente não está no céu, mas sim nesta esfera que vivemos. Neste sentido, o texto de Apocalipse demonstra a intenção do Senhor em estabelecer uma dissolução completa com o sistema antigo vigente, representado por Roma. Surge, então, o Novo Céu e a Nova Terra.

 

  • Novo Céu e Nova Terra, um conceito de vida recriado.

O simples leitor do Apocalipse do apóstolo João, por muitas vezes, pode se deixar levar ao engano no entendimento do que será o novo céu e a nova terra. É salutar, então, entendermos com profundidade o significado do conceito “novo/nova” que surge na perícope de Ap 21.1-7.

Numa primeira passada de olhos pode se ter a ideia de que um novo mundo será criado, a partir do nada novamente (ex nihilo), como no primórdio da história, assim como descrito nas primeiras palavras do livro de Genesis.

Muitas vezes o texto em língua portuguesa nos trai quanto à compreensão plena do texto sagrado. Aqui há um caso implícito. Usualmente, o texto grego do Novo Testamento se apropria do termo nh/oj (néos) quando quer retratar, de maneira adjetivada, o “novo”. Contudo, este trecho de Apocalipse que contempla a descrição do novo céu e nova terra, e subsequentemente a Nova Jerusalém, se utiliza do termo grego kaino/j (kainós) – ele aparece nove vezes no texto de Apocalipse, e em sua maioria no capítulo vinte um. A diferenciação se faz no fato de enquanto nh/oj é um adjetivo que traz consigo o conceito de algo novo, sem existência prévia,  kaino/j  representa o significado de qualitativamente novo[3]. Isso nos leva a entender que neste trecho das escrituras devemos ter a percepção que se trata de alguma coisa nova a partir de algo existente.

O novo céu e a nova terra não serão um segundo céu ou terra, como se surgisse um outro mundo completamente diferente. Eles serão o mesmo céu e a mesma terra, como local físico, só que recriado. O termo kaino/j nos sugere que o novo céu e a nova terra serão qualitativamente diferentes, principalmente em razão da presença santa de Deus nele. O antigo sistema operante no mundo onde o dragão, a besta, o falso profeta e a meretriz desenvolviam seu agir de iniquidade e corrupção não existirá mais[4].

Este novo padrão de mundo tem conexão direta com a criação nos seus primórdios. Por isso que é defendida a tese que o novo céu e a nova terra não serão algo totalmente novo, mas sim como o paraíso restaurado. Todavia, é preciso verificar que o novo céu e nova terra não serão o resgate pleno, materialmente falando, do Jardim do Éden. Lembramos que o plano de Deus para o futuro é urbano, na cidade, e neste caso na Nova Jerusalém. O paralelo com a criação descrita em Genesis é em termos atributivos. O novo céu e nova terra proporcionarão a mesma experiência de gozo para a humanidade, como ocorria no Éden, um lugar onde a comunhão com Deus era plena e sem qualquer tipo de sofrimento proveniente do pecado, como morte, dor e tristeza.

 

  • Deus está com seu povo

O novo céu e a nova terra será o lugar da habitação permanente de Deus. Na verdade, este momento é a consumação de todo um trabalho de Deus, através dos séculos, no objetivo de restabelecer a comunhão plena criatura-criador. Nas palavras de KISTEMAKER “Deus está com o seu povo em um cenário santo e perfeito”[5]. Este estabelecimento é permeado por toda estrutura das Escrituras ( Gn 17.7; Ex 6.7; Lv 26.12; Ez 11.20; Zc 2.10-11; 2Co 6.16 e Ap 21.3-7).

Deus só poderá estar com seu povo por causa do cenário purificado que o novo céu e a nova terra representarão. O apóstolo João não aborda isso no seu Apocalipse, mas outro apóstolo, Pedro, o faz em sua segunda epístola (2Pe 3.1-13). Neste texto, Pedro diz manter a esperança da promessa feita por Deus de uma nova habitação, um novo céu e nova terra, descrita nos capítulos sessenta e cinco e sessenta e seis do livro do profeta Isaías.  Acreditamos que Pedro tem a ideia de purificação por causa das inúmeras vezes que ele usa o fogo como elemento do seu discurso.

 

  • O mar não existe mais

A inexistência do mar traz uma das maiores mensagens do novo céu e nova terra em sua rica simbologia. A primeira delas é o rompimento total com o modelo de vida vigente no mundo, com bem observou LADD:

 

A afirmação de que o mar já não existe indica a diferença radical entre o sistema novo, redimido, e o antigo, caído. A mesma ideia aparece na literatura apocalíptica judaica (Oráculus Sibilinos 5:447, Assunção de Moisés 10:6). Novos milagres científicos modernos praticamente conquistaram os oceanos; mas no mundo antigo, com seus navios frágeis, o mar era o domínio das trevas, do mistério, do traiçoeiro. “Mas os perversos são como o mar agitado, que não pode se aquietar, cujas aguas lançam de si lama e lodo…Não há paz (Is 57.20-21)[6]

 

Além de mostrar a diferença radical entre o sistema corrompido e o redimido, novo, a ausência do mar no novo céu e nova terra nos ensina que não haverá continuidade entre o antigo sistema e o novo. Ou seja, mais uma vez, como já debatido acima, vemos a sobreposição de sistema.

No texto do Apocalipse, o mar, mais do que representar o inimigo do mundo antigo, simboliza, também, as inquietações e conflitos do mundo. Tal entendimento pode ser defendido pelo fato de ser deste mar que surge a Besta (Ap 13.1; 17.15). O novo céu e nova terra será uma antítese disso, a dizer, um lugar de plena paz.

Por último, podemos ressaltar que a inexistência do mar simbolize a extinção de limites entre os continentes. O mar como limite territorial no primeiro século era sinônimo de dificuldades e dispêndio financeiro elevado para a realização do comércio. Muitas vidas eram ceifadas pelo mar e, por causa de seu elevado custo de transposição, fazia boa parte das mercadorias, dentre elas os alimentos, serem produtos acessíveis a poucas pessoas.

A Nova Jerusalém surge neste contexto, totalmente novo, sem relação nenhuma com o modelo operante. Seguindo a linha de mudanças, a Nova Jerusalém aparece como um romper definitivo com o mundo corrompido pelo pecado.

 

 

  1. QUEM PODERÁ HABITAR NESTA CIDADE?

Uma temática é muito explorada no livro de Apocalipse: O prêmio pela perseverança da fidelidade a Cristo (Ap 2.7, 10, 17 e 26; 3.5, 12 e 21; Ap 21.7).  Somente os vencedores poderão beber do rio da água da vida (Ap 22.1). Mas quem são de fato estes vencedores?  A partir do que escreveu o apóstolo João, há duas maneiras de determiná-los, a saber, uma por inclusão e outra por exclusão.

Estabelecendo pelo método inclusivo, os vencedores são aqueles que conseguirem perseverar na lealdade a Jesus, mesmo diante de grande perseguição e, até mesmo, perigo de morte.

O contexto histórico do Apocalipse se dá na Ásia Menor, num tempo de pleno domínio do Império Romano. Esta parte do mundo tornara-se um grande centro de produção e comércio de bens de consumo. O importante comércio praticado ali, por sua vez, girava em torno de agrupamentos de produtores e mercadores em forma de associações, tipo as câmaras de comércio que temos atualmente. Elas eram conhecidas como guildas.

No primeiro século, estas associações, além do caráter comercial, tinham em si uma função religiosa muito importante no império romano. Entre outras coisas, cabiam as guildas o culto ao imperador de Roma.

A oposição a este culto compõe o pilar central do desenvolvimento das sete cartas às igrejas da Ásia (Ap 2.8-3.22). O que ocorria ali era que alguns cristãos para não perderem seu sustento ou até mesmo privilégios oriundos de suas atividades profissionais, adotavam práticas que tinham a falsa pretensão de alinhar suas vidas cristãs, e a subsequente fidelidade a Cristo, com as exigências religiosas da guilda na qual eram filiados. O vencedor que Deus promete habitar com ele na Nova Jerusalém, então, seria o que conseguisse se manter fiel a um culto somente, com apenas um senhor, e neste caso, Jesus Cristo.

Tal fidelidade poderia fazer com que a pessoa perdesse seu emprego, e consequentemente seu sustendo e de sua família. Alguns, em razão da opção de não prestar culto ao imperador eram perseguidos ou até mesmo mortos (Ap 2.13). Mas este cenário de terror não deveria ofuscar o gozo e a glória que o vencedor terá na Nova Jerusalém.

Pelo outro prisma, temos o método de exclusão. Este método traz as características daqueles que não habitarão na nova morada com Deus.

O capitulo 21 de Apocalipse descreve uma cidade contornada por uma grande muralha. No mundo antigo a parte mais importante de uma cidade era o muro. Ele proporcionava a segurança dos habitantes e a clara separação entre o que fazia e o que não fazia parte do conglomerado urbano. Neste sentido podemos considerar um simbolismo que nos indica que na Nova Jerusalém haverá uma clara divisão entre aqueles que estarão dentro e fora da cidade. O versículo de Ap 21.27 tende a aumentar o espectro do nosso entendimento desta questão:

 

Nela, nunca jamais penetrará coisa alguma contaminada, nem o que pratica abominação e mentira, mas somente os inscritos no Livro da Vida do Cordeiro.

 

Fica claro que a Nova Jerusalém será imune a investidas que virão do lado de fora. Estas investidas serão, certamente, proferidas por aqueles que não forem achados vencedores no acerto de contas final de Deus com a sua criação. Logo, então, temos pessoas que serão excluídas de participar da alegria de habitar pelos séculos na cidade construída pelo Pai para seus filhos (Ap 21.7, 26; 22.5).

Nós temos a disposição no Apocalipse duas listas que mostram quem serão aqueles preteridos do grupo dos vencedores. A primeira lista está em Ap 21.8 e a segunda em Ap 22.15. Ambas convergem entre si e são quase idênticas. A diferença é que em Ap 21.8 temos oito tipos de pecados (se assim pudermos chamar) contra seis de Ap 22.15:

 

Ap 21.8 Ap 22.15
Covardes Cães
Incrédulos  
Abomináveis  
Assassinos Assassinos
Impuros Impuros
Feiticeiros Feiticeiros
Idólatras Idólatras
Mentirosos Mentirosos

 

Tabela 1 – Lista paralela de excluídos de Nova Jerusalém

 

 

Acreditamos que a intenção do autor foi na segunda lista sintetizar em cães os três primeiros pecados constantes na primeira[7], por isso iremos detalhar os tipos constantes na relação de Ap 21.8 por ser mais completa:

 

  • Covardes – Estes são o que escolheram uma segurança pessoal ao invés de se manter fiel a Cristo. São aqueles que como predito na parábola do semeador não tem raiz, e vindo a tribulação se perdem (Mt 13.21). Eles contrariam as palavras de advertência de Jesus que diz que “quem quiser, pois, salvar a sua vida, perdê-la-á” (Mc 8.35)[8].
  • Incrédulos – Estes seriam os que pressionados pelos poderes do mundo, mudam de opinião em relação a sua prática de fé[9]. Também podem ser aqueles em quem Deus não pode confiar a preciosa mensagem de pregar o evangelho de Jesus[10].
  • Abomináveis – Certamente este grupo é formado pelos homens que se renderam a prática cúltica ao imperador. Numa análise cotidiana, são os que abrem mão da sua fé de maneira velada a fim de participarem do sistema corrupto vigente pelo pecado. Nas palavras de MOUNCE “They are successor to the idolatrous Israelites Who ‘consecrated themselves to Baal, and became detestable like the things they loved’ (Hos 9.10; Ex 5.21; Titus 1.16 e Rev 17.4)[11]
  • Assassinos – Jesus por duas vezes faz menção no inicio do Apocalipse a Sinagoga de Satanás (Ap 2.9 e 3.9). Esta expressão procura representar judeus que delatavam os cristãos as forças imperiais e que, por consequência, promoviam perseguição e morte das vidas de mártires[12]. Estes são os assassinos que agem por influência da Besta (Ap 13.15).
  • Impuros – O que é traduzido por impuros é o termos po/rnoj (pórnos). O pecado da impureza descrito aqui tem total relação com a prática da imoralidade sexual. Neste grupo concentra-se todo tipo como a prostituição, o adultério, a lascívia e a homossexualidade[13]. Existe, também, uma relação com a prostituição cúltica (realizada através das prostitutas dos templos pagãos) que cristãos infiéis se envolviam através de suas guildas.
  • Feiticeiros – O uso de farma/koi (farmákoi) pode nos dar a ideia de pessoas que usavam poções mágicas e encantamentos em um culto pagão de baixo nível[14]. Esta é uma herança da tradição hebraica, onde os feiticeiros são altamente combatidos por aparecerem sempre atrelados a adoração a outros deuses (Ex 7.11,  18; Lv 20.6, 27; Dt 18.11; Dn 2.2; Ml 3.5). Talvez possamos abranger neste pecado aqueles que procuravam praticar um sincretismo entre a fé cristã e a prática pagã imperial.
  • Idólatras – A prática pagã sempre esteve presente no mundo como semelhante a um vício. Os idolatras são os que adoram falsos deuses, que cedem ao misticismo e ao oculto.
  • Mentirosos – Traçando um paralelo conjunto com Ap 22.15, mentirosos são aqueles quem tem dentro de si o hábito e o prazer da mentira. Em Ap 21.27 é dito que a mentira não estará dentro dos limites da Nova Jerusalém. Só por isso os mentirosos já seriam excluídos. A mentira é o pecado principal daqueles que se encontram condenados à separação eterna de Deus[15].

 

Estar nesta lista significa ficar de fora dos muros da Nova Jerusalém, num lugar que as Escrituras chamam de lago de fogo (Ap 21.8).

 

 

  1. Nova Jerusalém – Simbolismo e Literalidade

Nós sabemos que a característica mais marcante da literatura apocalíptica judaica é o uso de figuras simbólicas em quase sua totalidade. É por isso que é um erro estudar o livro de Apocalipse como um relato cronológico pleno, ou que suas descrições sejam totalmente literais. Logo, não sendo um consenso no meio eclesiástico-acadêmico, tal matéria é objeto de acalorados debates.

Dentro destas discussões está a interpretação do relato da Nova Jerusalém (Ap 21.9-22.3). Existem grupos que entendem que a Nova Jerusalém do Ap 21 é a descrição simbólica exclusiva da igreja cristã. Outros, no polo contrário, defendem a tese de que é o relato fiel de uma cidade física, em todos os seus detalhes, como ruas de ouro e portas enormes compostas de uma única pérola.

O que nós precisamos ter em mente para tentar clarear tal embate é o papel impactante que a Nova Jerusalém tinha para o leitor/ouvinte do I sec. Para o judeu convertido, o restabelecimento da cidade devastada em 70 d.C. era algo que soava doce aos ouvidos por causa de toda sua raiz histórica. Já para o gentio convertido, a possiblidade de um local único, onde todos conviviam em plena harmonia e paz, representava simbolicamente a humanidade que tanto se sonhava. Assim, a conjunção destes dois cenários faz-nos pensar que a Nova Jerusalém seria uma promessa simbólica, mas ao mesmo tempo real de um mundo vivendo em plena harmonia com seu criador[16]. Por tanto, seria um equívoco de nossa parte se separássemos a Nova Jerusalém celestial da real.

 

 

  • O Simbolismo da Nova Jerusalém

Em Ap 21.9 a cidade é mostrada a João como se Deus estivesse oferecendo um bálsamo ao coração do apóstolo em relação a tudo de errado que este via na igreja cristã do final do primeiro século. Assim podemos entender que a Nova Jerusalém é a expressão simbólica da igreja de Cristo, a noiva, que está com ele e descerá triunfante para seu local de origem, agora renovado.

A igreja como noiva, a Nova Jerusalém celestial, representa o estabelecimento na plenitude do Reino de Deus na Terra[17].

Ela vem adornada produzindo um contraponto com o modo de vida mundano e terreno, representado no Apocalipse de João pela figura da Meretriz. Isso pode ser observado na similaridade da apresentação da Meretriz (Ap 17.1-3) e da Nova Jerusalém (Ap 21.9-10). Em ambos os casos é o mesmo anjo (quem tem as sete taças) que leva João, com a mesma atitude (em espírito), para a contemplação. A pequena distinção se faz no local. Enquanto a Meretriz é vista de um deserto (lugar comumente que representa morte), a Nova Jerusalém é vista de um monte (sinônimo de santidade).  Logo, a Nova Jerusalém celestial é certamente a transformação que Paulo vê nos crentes a pós a conversão (2Co 3.18; 4.16-18 e 5.16-17) numa escala cósmica, quando uma nova ordem plena suplantará a velha afetada pelo pecado[18].

Os adornos da noiva são detalhados entre os versículos onze e vinte e sete, transmitindo de maneira simbólica as características desta nova cidade. O simbolismo da Nova Jerusalém como sendo a igreja se mistura de maneira rica e impressionante ao dela como cidade.

A primeira característica simbólica da Nova Jerusalém a aparecer no texto é que ela terá a glória de Deus. Este certamente é o atributo mais importante da cidade. Ela terá o fulgor da pedra jaspe cristalina (v. 11). Parece-nos que esta pedra seria um pouco diferente do jaspe que conhecemos atualmente. Ela seria algo mais próxima do diamante. É a mesma pedra utilizada para descrever a Deus assentado no seu sublime trono em Ap 4.3. A Nova Jerusalém será superexposta a glória de Deus, a ponto de não necessitar de nenhum lumiar (sol ou lua – ver v.23). A própria glória emprestará luz a cidade.

Além do Jaspe, mais pedras preciosas fazem parte da descrição que João traz do adorno da noiva de Cristo. Segundo KISTEMAKER, esta é a representação que algo que cabe ao noivo, o próprio Cristo (Ef 5.26-27)[19]. KRAYBILL tem uma visão interpretativa das pedras preciosas que adornam a cidade como sendo a representação da justiça econômica da Nova Jerusalém[20]. Estas pedras representariam as riquezas dos reis da terra derrotados que seriam devolvidos para usufruto comum. Nossa visão ainda permanece alinhada com a representatividade figurativa da glória e da majestade de Deus presente na igreja e na cidade.

Outro símbolo a se destacar é a da santidade. No AT, Jerusalém já trazia consigo o emblema de ser uma cidade santa (Ne 11.1,18; Is 48.2 e 52.1; Dn 9.24). Neste caso, Jerusalém poderia ser considerada santa por ser o local do templo, habitação do altíssimo no meio dos homens. Na Nova Jerusalém, indo a um nível mais elevado, a santidade será decorrência da comunhão plena de Deus com seus escolhidos.

Existem vários aspectos no texto de Ap 21 que representam o que o versículo nove diz diretamente (a santa cidade). O mais importante diz respeito a descrição do tamanho da cidade. João descreve a cidade como sendo um cubo:

 

Aquele que falava comigo tinha por medida uma vara de ouro para medir a cidade, as suas portas e a sua muralha.  A cidade é quadrangular, de comprimento e largura iguais. E mediu a cidade com a vara até doze mil estádios. O seu comprimento, largura e altura são iguais. (Ap 21.15-16)

 

A intenção de tal descrição seria fazer um comparativo com o Santo dos Santos do templo de Salomão, que também era cúbico (1Rs 6.20; 2Cr 3.8). Da mesma maneira que o Santo dos Santos representava a presença de Deus em santidade no meio do povo de Israel, a Nova Jerusalém será o estandarte da santidade do Senhor em meio a criação. Em consonância disso, podemos ver que o autor afirma que na nova cidade não haverá templo, mas Deus será o próprio templo (v.22). Em virtude disso, a cidade terá uma pureza perfeita, simbolizada pelo “ouro puro, semelhante ao vidro transparente” (v.18).

Ainda tratando da medida da cidade, temos outro ponto a considerar. A cidade descrita em Ap 21 terá 4,8 milhões de m², a mesma extensão territorial do império romano na época em que o Apocalipse foi escrito[21]. Isso reforça a ideia, trazida desde o começo do capítulo vinte um com o relato do novo céu e nova terra, de que este evento histórico suplantará o modelo corrupto antigo por um novo, perfeitamente santo.

O número doze tem destaque nesta perícope do Apocalipse. A dimensão da cidade é medida em 12.000 estádios em cada lado. Há na cidade doze portas com os nomes das tribos de Israel e doze anjos. A muralha mede cento e quarenta e quatro côvados (ou seja, doze vezes doze) e é sustentada por doze fundamentos, cada um representando um apóstolo do Senhor. Este simbolismo nos remete ao fato da Nova Jerusalém ser resultado de uma ação direta de Deus no seu povo, na história (em virtude do número doze). Sobre isso LADD discorre:

 

…os doze nomes dos doze apóstolos do Cordeiro. Isso é uma alusão óbvia a teologia da igreja, edificada sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas (Ef 2.20). Com este simbolismo das doze portas com os nomes das doze tribos de Israel e dos doze fundamentos com os nomes dos doze apóstolos João indica que a cidade engloba as duas dispensações, mostrando que o Israel do Antigo Testamento e a igreja do Novo Testamento tem seu lugar na morada derradeira de Deus[22].

 

Este conjunto de “doze” simboliza toda a dinâmica do projeto redentivo de Deus. Pois por Israel (as portas) o mundo pode ter um salvador e pela mensagem registrada (Evangelho) e pregada pelos apóstolos dele, este mesmo mundo teve acesso a obra expiatória do Messias.

 

  • Nova Jerusalém – Uma cidade real.

Como já tratado acima, o entendimento mais comum a respeito da Nova Jerusalém descrita em Ap 21 é do simbolismo que leva a igreja de Cristo. No entanto, o texto bíblico não nos desautoriza a pensar numa cidade literal, real. Em verdade, toda a descrição de ruas de ouro, pedras preciosas, portas gigantescas composta de uma pérola só, entre outras coisas devam ficar no campo da linguagem figurativa. Contudo, importantes aspectos podem surgir a partir do momento que considerarmos a possibilidade de uma cidade real no plano futuro  e eterno de Deus.

Uma cidade real como morada eterna tem muito mais elos em comum com a narrativa bíblica do que se imagina. Considerando, por exemplo, que não temos dificuldade de entender que o Éden era um lugar físico, que existiu neste plano terrestre em algum momento da história, e que a nova terra e o novo céu, em conjunto com a Nova Jerusalém será a restauração deste modo operante, não poderia ser tão difícil para nós aceitar a ideia de que a Nova Jerusalém será uma cidade de verdade num futuro dentro dos planos de Deus. Mais além, é comumente aceito o argumento do novo céu e a nova terra como sendo literal. Por que então não aceitar a cidade mencionada no mesmo contexto como sendo literal também?

Outro ponto a favor é que os patriarcas nutriam por fé e ansiavam por uma cidade física arquitetada e edificada por Deus (Hb 11.10), de caráter superior (Hb 11.16).

Talvez a nossa maior dificuldade de compreensão esteja no fato de que mesmo depois de mais de dois mil anos de igreja, ainda estejamos sujeitos a direcionamentos do pensamento grego clássico. No fundo muito de nós considera que Deus só faz coisas boas no âmbito espiritual. Não que não acreditamos que Deus não possa fazer, mas aceitamos a ideia de que algo perfeito só existe se for desmaterializado.

Alguns estudiosos, como Robert Gundry, defendem a tese de que a Nova Jerusalém já existe hoje na prática. A Nova Jerusalém seria a descrição dos próprios santos, como sendo morada de Deus nos santos, a habitação do Espírito Santo[23]. Todavia, tal explanação fica inconclusiva, ao nosso entender, ao explicar o porquê a cidade aparece somente nos finais dos tempos no relato bíblico. Não há em qualquer outra referência de sustentação para esta ideia em qualquer das sete seções do Apocalipse.

Outro ponto a se pensar é quanto a repetição da palavra po/lij (pólis) no capitulo vinte um. Das vinte e três ocorrências deste substantivo em todo texto de Apocalipse, dez referem-se diretamente a Nova Jerusalém, sendo nove delas somente no capítulo vinte um. Tamanha repetição pode nos levar a entender que não se trata de uma concepção figurativa. Corroborando a isso, podemos pensar também que não faria sentido que seres humanos fisicamente ressuscitados em um corpo terem que habitar num local não físico.

Por último, conseguimos traçar um paralelo direto entre a Nova Jerusalém e as cidades do primeiro século. A cidade santa é descrita com todas as características comuns de uma cidade do tempo da composição do Apocalipse. Ambas são munidas de edificações, muros, portas, praças e etc. Contudo, é importante ressaltar que mesmo com as características principais idênticas, ela guarda alguns contrastes com as cidades romanas. Na Nova Jerusalém não haverá templo, Deus será o templo. Nas cidades romanas sempre havia um templo pagão ligado a uma guilda. Na Nova Jerusalém não haverá noite, que era um problema sério para uma cidade romana, devido a precariedade de iluminação. E os portões ficarão sempre abertos, pois serão guardados por anjos, o que seria impensável para uma cidade construída por mãos humanas do séc. I.

 

CONCLUSÃO

Concluindo, de tudo que pudemos nos aprofundar no conhecimento das nuances da Nova Jerusalém, há duas questões que devemos trazer em destaque. A primeira delas é que ela nos mostra, em definitivo, que o final último do homem não será o céu. O céu é um estado transitório na nossa existência (para aqueles que creem no sangue derramado do Cordeiro). O projeto de Deus para nós é terreno e urbano. E a segunda é que a Nova Jerusalém será o grande e definitivo memorial do plano redentivo de Deus, que será dado por recompensa para aquele que se manter fiel e vigilante até o último dia.

 

Deus o abençoe.

 

Fábio Marchiori Machado

 

P.s.: Você pode baixar este artigo em PDF clicando aqui.

Referências:

[1] MOUNCE, Robert H. The book of Revelation. Grand Rapids: W. B. Eerdmans, 1977, p. 370.

[2] Vários teólogos no decorrer da história defenderam, e ainda defendem a teoria de que o livro do Apocalipse é composto pela mesma história contada sete vezes. A esta teoria dá-se o nome de Teoria da Recapitulação. O primeiro expoente dela foi Vitorino de Poetovio através do seu comentário escrito perto de 300 d.C.  Entre os teólogos modernos de maior destaque que a defendem está William Hendriksen.

[3] KISTEMAKER, Simon J. Apocalipse. São Paulo: Cultura Cristã, 2004. P. 696.

[4] HENDRIKSEN, William. Mais que vencedores: uma interpretação do livro do Apocalipse. São Paulo: Cultura Cristã, 2011, p. 231.

[5] KISTEMAKER, Simon J. 2004, p. 695.

[6] LADD, George Eldon. Apocalipse: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, Mundo Cristão, 1986, p. 205.

[7] THOMAS, Robert L. Revelation 8-22: an exegetical commentary. Chicago, IL: Moody press, 1995. xv, p. 507. – Apesar de comumente as escrituras também trazerem simbolizado nos cães a prática de prostituição (Dt 23.18), os gentios (Mt 15.26) e os judaizantes (Fp 3.2-3), entre outros.

[8] MOUNCE, Robert H. 1977, p. 375.

[9] KRAYBILL, J. Nelson. Culto e comércio imperiais no Apocalipse de João. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 276.

[10] LADD, George Eldon. 1986, p. 208.

[11] MOUNCE, Robert H. 1977, p. 375. – “Eles são herdeiros dos israelitas idólatras que ‘consagraram eles mesmos a Baal, e tornaram-se abomináveis como as coisas que eles amavam’ (Os 9.10; Ex 5.21; Tt 1.16 e Ap 17.4)” – (tradução nossa)

[12] KISTEMAKER, Simon J. 2004, p. 704.

[13] Ibid.

[14] LADD, George Eldon. 1986, p. 104.

[15] THOMAS, Robert L. 1995. xv, p. 452.

[16] KRAYBILL, J. Nelson. 2004, p. 286.

[17] KISTEMAKER, Simon J. 2004, p. 707.

[18] MOUNCE, Robert H. 1977, p. 373.

[19] KISTEMAKER, Simon J. 2004, p. 698.

[20] KRAYBILL, J. Nelson. 2004, p. 288-289.

[21] Taagepera, Rein. Size and Duration of Empires: Growth-Decline Curves, 600 B.C. to 600 A.D. Social Science History 3, Durhan: Duke University Press, 1979, p. 125.

[22] LADD, George Eldon. 1986, p. 209.

[23] GUNDRY, RH. THE NEW JERUSALEM : PEOPLE AS PLACE, NOT PLACE FOR PEOPLE. NOVUM TESTAMENTUM. 29, 3, 254-264, JULY 1, 1987

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